terça-feira, 28 de junho de 2005

Porra amável

Resisti muito antes de escrever este texto encomendado sobre como as pessoas usam a palavra porra no Nordeste. Não quero falar pelos outros nordestinos, falarei pelo que ouvi e usei, pois apesar de ter nascido na incrível São Paulo e acidentalmente morar agora na amada Curitiba, vivi muito tempo em Maceió.
Até procurei no Houaiss e no Aurélio, mas não vêm ao caso as definições, que claro são ótimas, mas têm muito pouco a ver com o que fui solicitado a escrever, explicar ou defender.
Adianto que isto se trata de um árduo esforço meu que só terá validade caso seja seguido de um árduo esforço do leitor. É necessário imaginar todo o ambiente onde estão inseridos o emissor da palavra e o(s) receptor(es). Logo (sem ser infame ou piegas, mas já sendo), pensem em algo como uma praia que parece irreal, mas existe. Nela existem muitíssimos coqueiros, uma faixa de areia branca e um mar azul de tom indizível e morno. As pessoas que vivem por ali, nessa praia, só elas, podem usar a tal palavra da forma que fui solicitado a elucidar. Sim, de forma que parece até mesmo um crime falar um porra em meio a uma roda de amigos e ao mesmo tempo abraçar os presentes, mas na realidade, todos ali estão apenas tirando proveito de sua simplicidade e opção de viver mais intensamente, e ao mesmo tempo acreditarem que até a coisa “palavra”, e não só o porra, vale muito mais do que valeria fora dali. Então o árduo esforço é composto da imaginação daquele cenário já tratado e de uma tentativa de inserção no ambiente, ou seja, quem emite a palavra e quem ouve, devem estar cientes de que ela tem uma formação muito mais complexa, abrangente e brincante. A palavra passa a não ter mais a validade e o único sentido que é dado ao seu significado ou definição, mas se torna um instrumento de jogo com a realidade. Linda realidade dos que simplesmente dizem uns aos outros e acreditam no que dizem e muito mais no que ouvem.
A partir daí entendemos assim que tudo passa a ter outro teor, valor, sentido e sensação, o tempo, a vida, a morte, o amor, a paixão, a comida, a bebida, os coqueiros, a areia, o mar, as pessoas e as palavras finalmente. O significado e o conceito das coisas, essas que insistentemente julgamos conhecer todas entre o céu e a terra, mantêm seu significado e definição, mas não têm o mesmo teor, valor, sentido ou sensação.
O Nordeste é um lugar que ao sair pela porta do avião (e só assim temos a oportunidade de sentir o que vou explicar) o passageiro tem a sensação nítida que muitas vezes tentei definir com coisas como palavras, de que um “bafo” quente entra pelos poros e fica. Para o sempre. O corpo é alma quente como sempre quis ser ao viver paixões e sentimentos bons. Advirto então que qualquer palavra pode ser assim usada para o bem, mesmo que soe mal. De certo, mesmo não sendo esse o objetivo, essa é uma boa explicação para um sotaque que parece música e uma gente que parece andar dançando.
Concluo que para dizer um “porra amável”, se é que assim podemos definir o que meu tio Mario me pediu para fazer acalmar os amigos que ficam loucos ao serem chamados carinhosamente de “seu porra”, é preciso muito esforço e tempo, mas um tempo bem vivido às ruas de uma cidade simpática com cheiro de jambo e maresia, uma cidade, qualquer uma delas que fique lá depois da curva de Porto Seguro. E esse é um privilégio de poucos, como o meu tio Mario, e não sei se de todos que ouvem a carinhosa alcunha, provavelmente aí more a confusão.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Esse lugar é Maceio POOOORRRAAAA !!!!!!!

9:19 PM  
Blogger D. said...

Glup!

9:53 PM  
Anonymous Anônimo said...

Porra, Godoy!!! Muito bom! Como se não bastasse as incursões na semiótica, retratou afável e esclacededor que se exige tempo e empenho para entender a complexidade de uma simples expressão.

Um grande abraço e gostaria de lembrar de passar aqui mais vezes.

12:26 PM  

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