segunda-feira, 4 de agosto de 2008

FERNANDA JÁ MORREU

(Puxe o fôlego) Que tal se... Que tal se (comece a chorar) amanhã pela manhã na hora que você acordasse, Fernanda, você pegasse todo esse monte de dinheiro da sua conta corrente, sacasse, fosse em uma agência de viagens, comprasse uma passagem para algum lugar bem interessante, voltasse para casa, arrumasse a sua mala, ligasse para a sua mãe, explicasse para ela que você decidiu viajar, sacou o dinheiro que tinha no banco, criou coragem para fazer o que sempre quis fazer, fugir desse emprego do cacete que você arranjou, ganhando esse salário que cresce em função exponencial, agüentando essa gente que não quer nem saber quem você é, nem nunca vai saber, afinal você não está a fim de contar, ligasse para o escritório e avisasse o chefe do departamento de recursos humanos, pedisse demissão por motivos pessoais, e se alguém mais próximo do escritório lhe perguntasse o que você está fazendo ou o porquê dessa decisão assim tão precipitada e impulsiva, você respondesse que nem você sabe ou que não é da conta dele, que tal?
Fer, você lembra quando a gente estava indo para a casa da sua mãe e parou para jantar num restaurante meio antigo e você pediu um... (já pode rir) um prato com salada e eu um bife com batatas fritas, saímos de lá e continuamos a viagem falando de uma loucura sua de querer que eu abrisse a cabeça para certas coisas, e eu indignado com aquele papo mandei você se foder e disse que já tinha aberto a cabeça para coisa mais produtiva, mas você não entendeu e mandou eu me foder antes porque eu era pudorento e ignorante?
Não sei mais o que lhe dizer. Esse seu choro tem muito a ver com a minha vida também. É uma fase muito complicada essa, a adolescência já se despede, mas ainda não nos sentimos definidos o suficiente para ser adultos. Quero agora que você vá para casa, quando terminarmos, durma o máximo que puder e tente relaxar. Senão fica muito difícil de você cumprir o que tinha acertado. O seu potencial é válido, mas ainda não consigo ver resultados reais. Precisamos acertar nossos ponteiros. Por favor, repense a situação de forma crítica. Seja mais você. Um dia você me entenderá. Um dia eu lhe entenderei. Vá. Pode ir.
Senta aí. O pensamento é um pouco lunático (pode começar a rir), mas você vai gostar. Eu penso em criar uma forma em que se desenvolva opinião e crítica, o que falta. O homem sempre procurou usar o que tinha de recurso e nunca em utilizar o que tinha dentro da cabeça. Imagine se nós já tivéssemos desenvolvido uma forma de fazer os cachorros opinarem sobre o que é ser vivo ou não para eles que farejam tudo? Seria incrível, não acha? Teríamos uma ciência paralela que serviria para questionarmos a nossa existência como seres. Nós ainda não sabemos criticar, Fer! (boceje) Não sei se você me entende, mas acho que deu para começar a explicar o que é a minha proposta de trabalho, mesmo que você nunca me leve a sério porque não me entende em noventa por cento das vezes que nos falamos, mesmo na nossa amizade. Que é linda, não acha?
Você voltou depois de tanto tempo para me colocar contra a parede. É um absurdo eu sentir essa culpa pela sua situação. Quem me perguntou foi você. Eu respondi clinicamente, como podia responder. Não me culpe, mas me desculpe. Não lhe chamei de louca, disse o que você queria e precisava ouvir para sair por cima. Tome isto. Esqueça tudo. Volte amanhã.



Texto enviado para a OFF FLIP 2008, categoria Conto