quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O único que se mata

Era quase sete horas da noite quando passando pela frente da pizzaria dei de cara com colega de escola:

- Antônio Francisco Gonçalves Filho! – dei um berro como polícia chamasse bandido à cela de cadeia.

- Minha querida amiga! – surpreendeu-se.

- Há quantas anda, "cabra velho"?

- Muy bien. – brincou de falar espanhol numa voz baixa.

Há muito que não sabia dele, um cara desses que sofreu na escola. Criança é cruel. Não perdoa nada, nem pai pobre, nem mãe morta, nada. Se você é menino adotado então, isso não tem moleque que deixe de tirar sarro. Era claro que não era filho de sangue dos pais, a semelhança não existia em nada, nem na parte branca dos olhos.


Eu e Gonçalves estávamos juntos sempre, desde o meu primeiro dia de escola, quando vim de Lagos, depois de papai trabalhar por três anos e meio em uma obra daquelas, eu falava português porque era o que se falava em casa, mas peguei sotaque, o francês tem fonemas malvados. Brincavam comigo também, mas nada comparado ao volume de sacanagens com ele.

O chamam "Gonçalves" pelo seguinte: não sei que se passou naquela década passada que tinha feito um menino chamado Antônio Francisco para cada cinco. Tinha o "Figueira", o "Lucindo" e o "Hockmann", todos na mesma sala. Este último de sobrenome alemão era de Recife, chato como o que, mas daqueles chatos bobos, que não se misturavam por nada, foi esquecido.

- E você tem notícia dos outros meninos? Sempre lhe pergunto isso...

- Só sei de Hockmann, mora em Buenos Aires, vive com uma argentina.

Tudo bastava para as piadas, até do sobrenome gozavam: "Gonçalves só de nome", porque era só de nome mesmo. Sendo sempre assim, por fora de tudo, até no clube, ambiente repugnante que sempre me deu calafrio de todo tipo, era excluído porque não era puro sangue.

Isso moldou um homem diferente. Já se sabe que beleza compra tudo, quem é realmente bonito e popular não precisa de esforço para ser aceito. Gonçalves não tinha problema com beleza, mas com popularidade, não pertencia a nada. Nem à sua família com o sangue, nem ao grupo escolar, nem ao banho de piscina no clube.

Ele estudava mais que todos, quando adolescente, namorou Andréa, uma ruiva lindíssima, filha de intelectuais que o trocou por um surfistinha de merda bem no fim do terceiro ano. Gonçalves não foi ao baile de formatura por isso.

Logo que saiu da escola, fez dois meses de Escola Técnica, mas logo largou. Seu pai o propôs uma ida aos Estados Unidos para fazer a faculdade lá. Formou-se em Ciências Contábeis pela Universidade de Chicago e voltou. Abriu uma banca de contadores aqui e logo se transformou no contador de muita empresa e de gente rica. Investe em gado leiteiro hoje e ganha bastante dinheiro com isso.

- Gonçalves, se fica rico tratando funcionário como boiada ou se trata funcionário como boiada porque se fica rico? – perguntei quase gargalhando.

- Olha, querida, o perigo desse seu pensamento é analisar uma situação de forma burra. Eu sempre que vejo aqueles catadores de laranja na beira da estrada penso em algo parecido com isso. Mas hastear uma bandeirola vermelha, ou de qualquer cor que lembre a União Soviética, é uma tacanhice de primeira. Os problemas não se resolvem assim, ainda mais coisas que envolvem o ser humano, bicho bem mais complexo que boi e o único que se mata.

E o avô dele havia se matado. Lembro da notícia chegando na escola quando a mãe dele o foi buscar uns quinze minutos depois do recreio.

Foi menos de meia hora de conversa, sem nenhum afeto, nem parecia amizade.

Entrei na pizzaria.

- Boa noite, senhora. Uma grande, meio calabresa com cebolas e meio quatro queijos, por favor.